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Yoga com Tênis?

Yoga com tênis.

A popularização do yoga(1) no ocidente e sua absorção pela mídia e grandes corporações é algo até certo ponto natural e inevitável, mas podemos tentar prevenir algumas deformações que podem parecer não causar maiores consequências, especialmente se não conhecemos a fundo os princípios da disciplina. Funciona como aquela brincadeira infantil do telefone sem fio. A cada nova retransmissão, pode-se deformar ou mesmo perder o conhecimento original. Aqui no Brasil temos a tendência natural de absorver o conhecimento com a intermediação dos centros predominantes cultural e economicamente no mundo. Não estou procurando fazer aqui um libelo anti-imperialista, mas devemos tomar cuidado com o aprendizado de algumas disciplinas, oriundas de culturas que até há relativamente pouco tempo atrás eram pouco acessíveis, tais como, por exemplo, a acupuntura, o budismo e especialmente no nosso caso, o yoga, que tem origem na hoje já não tão longinqua e nem tão inacessível Índia. Por que absorver o conhecimento ancestral indiano com a intermediação de outra cultura, quando pudermos, na medida do possível, buscá-lo diretamente na fonte?

No Brasil, felizmente, a prática e o ensinamento do yoga não é algo novo, e podemos dizer que já possui alguma tradição, graças ao esforço pioneiro desde a década de 1960 de mestres como Hermógenes, Caio Miranda e outros menos conhecidos mas tão importantes quanto. Claro que, com a popularização da busca pelo conhecimento oriental, naturalmente grandes mestres indianos começaram a divulgar seu conhecimento a partir da metrópole americana, principalmente. O que me preocupa é que tenho visto ultimamente alguns jovens buscadores brasileiros procurando seu referencial nos Estados Unidos e exibindo seus currículos de cursos feitos com “grandes mestres americanos”. Alguns talvez sejam, não estou aqui para questionar isso, mas devemos estar atentos para não receber informações deformadas por ignorância, adaptação cultural ou mesmo por interesses econômicos. Precisamos analisar o conhecimento a nós transmitido com equilíbrio e certo espírito crítico.

Para explicar melhor, tentarei descrever um exemplo real de como a desinformação pode gerar deformações graves no aprendizado da disciplina. Mais do que aprender as implicações fisiológicas e discorrer sobre os efeitos das posturas de yoga sobre a musculatura, ossos e articulações, como vem predominando no ensino popular do hatha yoga e outras modalidades, é necessário conhecer e preservar os conceitos fundamentais da prática, caso contrário poderemos, inocentemente, alterar um pequeno detalhe que aparentemente não fará diferença alguma, mas que pode comprometer toda a estrutura do conhecimento, transformando o yoga numa prática de ginástica de alongamento simplesmente ou ainda em algo próximo da ginástica desportiva.

É preciso ressaltar que não basta imitar fisicamente os movimentos do yoga. Yoga não é ginástica, que é da alçada dos colegas profissionais de Educação Física. Um professor de Yoga não é professor de educação física nem deve pretender sê-lo, embora nada impeça que um professor desta disciplina, com o aprendizado devido, possa vir a ser professor de yoga. Yoga também não é medicina, nem mesmo alternativa, embora possa ser usada para melhorar a saúde do indivíduo, trazendo grandes benefícios terapêuticos. Deixemos a medicina para os médicos. Yoga também não é psicoterapia, embora esteja intimamente ligada ao equilíbrio da psique humana e possa ser usada como ferramenta de apoio a qualquer terapia psicológica tradicional. Não é religião, embora seja ancorada numa tradição ancestral de espiritualidade, e possa ser usada como ferramenta de crescimento espiritual, independentemente da formação cultural-religiosa do indivíduo.

Enfim, o yoga não é nada disso, mas é um pouco de tudo isso. Georg Feuerstein(2) definiu-a muito bem como sendo uma “Tecnologia Psicoespiritual”, ou seja, “uma sabedoria e um conhecimento aplicados ao serviço do destino evolutivo superior da humanidade através do estímulo à maturação psicoespiritual do indivíduo”. De forma mais simplista, poderíamos definir o yoga como um caminho. Um caminho estruturado para o autoconhecimento e evolução do ser humano.


Foto 1 – Parivritta Janu Shirshasana

Mas, vamos ao exemplo prático – por que não fazer yoga de tênis? Vejamos a postura da foto como exemplo: Chama-se, em sânscrito, Parivritta Janu Shirshasana, que significa “postura torcida da cabeça em direção ao joelho”. Vejamos o que diz o livretinho(3), editado por uma empresa fabricante de artigos esportivos e distribuído num grande evento de yoga, na descrição da postura – atenção especial às indicações:

“Como fazer: sente-se em Dandásana (coluna ereta, pernas unidas e estendidas à frente do corpo, tornozelos internos juntos, mãos ao lado dos quadris). Com a mão direita, puxe o joelho interno direito para o lado direito, flexionando-o para fora. Flexione o tronco na direção da perna esquerda e aproxime da coxa anterior esquerda a cintura do lado esquerdo.

Indicações: Desenvolve os tornozelos e fortalece os músculos das pernas, costas e abdômen. Abre o peito e refina a postura natural da praticante. Previne cãibras nos músculos gêmeos (panturrilhas).

Contra-indicações: hérnia de disco.”

A postura supracitada é uma variação, com torção, da postura abaixo, Janu Shirshasana, cujos benefícios terapêuticos são descritos da seguinte forma pelo renomado Mestre indiano B. K. S. Iyengar(4):

Foto 2 – Janu Shirshasana

Em sânscrito, janu é “joelho” e sirsa é “cabeça”. A prática dessa postura exerce um impacto dinâmico sobre o corpo e traz muitos benefícios. Alonga a parte anterior da coluna e reduz os enrijecimentos dos músculos das pernas e das articulações dos quadris. Aumenta a flexibilidade de todas as articulações dos braços, desde os ombros até os dedos. Flexões como Janu Sirsasana recondicionam o lobo frontal e o coração. Tonifica os órgãos abdominais. Estabiliza a pressão sanguínea. Corrige gradualmente desvios de coluna e ombros encurvados.”

Como podemos perceber, ambas as descrições são bastante detalhadas e dão ênfase aos benefícios fisiológicos da postura, bem ao gosto ocidental. Atenção ao detalhe da perna esquerda dobrada. Em ambas o calcanhar toca o períneo, localizado entre o ânus e o sexo. Por acaso? O que não é explicado, mesmo na perfeita e detalhada descrição do grande Mestre Iyengar, é que há um aspecto energético sutil nesta postura na qual é dada ênfase à energização de determinados chakras (centros energéticos sutis). Segundo o ponto de vista do Dakshina Tantra Yoga, neste caso, além do manipura chakra, localizado na altura do umbigo, há ênfase na energização do muladhara chakra, cujo ponto de localização é exatamente no períneo, ao ser pressionado pelo calcanhar.

Ambos os exercícios também preparam o aluno para um estágio mais avançado da prática, através da postura descrita abaixo, que rigorosamente não será considerada mais um asana (postura) e sim um Mudrá(5), conhecido no Tantra como Maha Mudra (a Mudrá de Grande Importância), descrita pelo Professor Paulo Murilo Rosas(6) da seguinte forma:


Foto 3 – Maha Mudra

“Aspectos fisiológicos: Tonifica e fortifica os órgãos abdominais, os rins e as glândulas supra-renais. Cura indigestão, dispepsia e prisão de ventre. Segundo o Sr. Iyengar, os homens se beneficiam com esta postura, desde que a pratiquem persistentemente. Também as mulheres que têm prolapso uterino encontram um grande alívio com esta postura, porque ela ajuda a repor o órgão no lugar.

Aspectos psicológicos: A pressão do calcanhar – primeiro o esquerdo, depois o direito – na região do períneo excita a energia do Muladhara Chakra e bloqueia a passagem do Prana ora por Idá, ora por Pingalá, dando ênfase à energização pela Sushumna Nadi. (…) A energização de todos os Chakras na raiz é muito importante dentro do ponto de vista Tântrico, pois somente com esta energização é que poderemos vivenciar a plenitude das características da nossa personalidade.”

Aqui, na descrição tântrica, sem deixar de descrever os aspectos fisiológicos, há enfase na descrição dos efeitos energéticos sutis da postura.

Traduzindo de forma simples, há a necessidade do calcanhar tocar e pressionar o períneo de forma a fechar um circuito energético corporal, além de exercer uma pressão no ponto citado.

Embora, do ponto de vista estritamente físico não seja nenhum grande pecado fazer a postura com o acréscimo de um tênis (da marca dos nossos patrocinadores…), do ponto de vista do yoga é um erro gravíssimo colocar uma estrutura isolante de borracha entre os pontos de contato corporais. Se você fizer essa postura com o tênis, ainda conseguirá a maioria dos benefícios físicos superficiais, mas não poderá mais chamar a isso de yoga. Será, no máximo, mais um exercício de alongamento, inspirado no yoga. Esse é apenas um pequeno exemplo de como, a longo prazo, a ignorância conceitual de uma disciplina profunda e complexa pode gerar problemas como esse e talvez outros mais graves.

Atentemos para mais um detalhe, de modo a não sermos enganados pelas aparências: Qual das ilustrações acima apresenta a postura mais avançada? Se você respondeu número três, acertou. Embora aparentemente as outras fotos apresentem posturas que exigem maior flexibilidade, no Maha Mudra, além do calcanhar no períneo, o praticante faz Jalandhara Bandha(7) e Mula Bandha, com retenção da respiração com o pulmão cheio, seguido de Uddhyana Bandha, com retenção com o pulmão vazio. É uma prática somente recomendada para alunos bastante avançados, dada sua dificuldade e o grande aporte energético. Portanto, não se deixe impressionar por imagens de pessoas fazendo posturas que exigem flexibilidade fora do normal ou grande força física. Isso não habilita uma pessoa necessariamente como um praticante avançado.

Se posso oferecer um conselho aos colegas professores e aos praticantes é: Não invente! Os mestres indianos levaram alguns milhares de anos criando e depurando uma prática que aproxima-se da perfeição. Não podemos colocar nossa pretensão e soberba cultural acima disso. Procure seguir a tradição da melhor maneira que puder, sem tentar “melhorar” o yoga. Não invente novas modalidades de yoga exóticas com nomes impactantes para fazer marketing ou com seu próprio nome para alimentar o ego. Faça do yoga uma maneira de tornar as pessoas melhores e consequentemente tornar o mundo melhor. Ainda está em tempo e os Grandes Mestres agradecem. Afinal, para isso o Yoga foi criado.

Ricardo Coelho

(1)Estou grafando neste texto a palavra “yoga” no gênero masculino (o yoga) e em itálico, como seria em sânscrito, sua língua de origem. Nada contra o termo aportuguesado “ioga”, que nesse caso seria no gênero feminino (a ioga). Também grafei os termos em sânscrito, de forma o mais fonética possível, para evitar deformações na pronúncia.

(2)Livro: A Tradição do Yoga , pags 28, 29 – Ed. Pensamento

(3)Livreto: Guia Play Yoga – distribuído aos participantes do evento “Play Yoga” – São Paulo, abril de 2008.

(4)Livro: Iyengar Yoga – posturas principais, pags 94 a 97 – Ed. Cores e Letras

(5) Mudras são gestos que servem para imobilizar o Prana (energia sutil) em determinadas regiões.

(6)Livro: Avanthara Sadhana – técnicas tântricas – Ed.Exímia.

(7)Bandhas são “chaves” energéticas de direcionamento e/ou retenção da energia, usados isoladamente ou em conjunto para formar certos Mudras.

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