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Tantra, Sexualidade e Espiritualidade

Tantra, Sexualidade e Espiritualidade

Em minhas aulas frequentemente recebo alunos com um olhar desconfiado, querendo saber que tipo exatamente de yoga eu ensino ou ainda outros procurando o “tantra para casais”. Muitas das vezes essas ideias vêm associadas com informações recebidas pela mídia ou de pesquisas feitas na internet com a palavra “tantra”. O retorno de tais pesquisas é uma enxurrada de informações, em sua maioria ligadas ao que uma linha de praticantes do ocidente chama de “neo-tantrismo” que prometem a liberação do prazer sexual através de várias técnicas orientais, algumas vezes com orientações e fotos bastante explícitas. Essas informações causam uma grande confusão na cabeça das pessoas e dá um grande trabalho tentar esclarecer essa história. Há uma enxurrada de equívocos sobre o que seja de fato o tantrismo e eu gostaria de dar alguns esclarecimentos básicos sobre essa filosofia[1], que estarão longe de esgotar toda sua complexidade e riqueza, mas que são extremamente necessários.

Em primeiro lugar, o termo “neo-tantrismo” é um equívoco típico da nossa prepotência ocidental, pois pressupõe que se pode criar algo melhor do que o que vem sendo ensinado e aperfeiçoado durante milhares de anos em sua cultura original na Índia. Rigorosamente falando não existe o que chamamos de neo-tantrismo, ou pelo menos este neo-tantrismo não tem nada a ver com o tantrismo original. A não ser pela reprodução equivocada de algumas técnicas relativas à relação sexual, sem nenhuma filosofia ou objetivo definido. O que me parece é que o grande atrativo que o “tantra do sexo” ocasiona nas mentes ocidentais deve-se ao fato de que a sexualidade não é encarada como algo natural e por trás de uma aparente liberalidade sexual esconde-se uma sociedade que não vive sua sexualidade de forma saudável. Então, dito o que não é o Tantra, vamos tentar esclarecer (um pouquinho), do começo, o que é o Tantra.

O Tantra, falando de forma bastante simples, é um conhecimento que surgiu na Índia há cerca de 5.000 anos (isso numa estimativa modesta), embora sua sistematização tenha ocorrido apenas a partir do séc. V de nossa era. É uma filosofia não-dual, que preconiza que em última instância há apenas a Unidade. Tendo como símbolo dessa Unidade a deidade conhecida como Shiva. Shiva representa a consciência sem forma que se manifesta no mundo na forma de Shakti e assim desdobra-se no mundo manifesto. Shiva e Shakti, masculino e feminino integram-se e formam tudo o que existe. O objetivo da prática tântrica é fazer com que o indivíduo possa perceber que ele já é e sempre foi essa unidade. A tal felicidade que tanto buscamos já está aqui e aqui sempre esteve. Não há o que buscar, apenas há que reconhecer que você já é essa felicidade que tanto busca.

Ou seja, quando conseguimos integrar o masculino – Shiva, com o feminino – Shakti, atingimos essa percepção. Aí é que o caminho tântrico se desdobra em duas formas diferentes, o dakshina marga e o vama marga, a via da mão direita e a via da mão esquerda, respectivamente. Embora ambos os caminhos tenham a mesma filosofia de base, diferem na maneira como seguem esse caminho, ou seja, na sua prática. No Dakshina Tantra entende-se que, tanto o homem como a mulher possuem ambos os princípios masculino (Shiva) e feminino (Shakti) e preconizam uma série de práticas que buscam integrar ambos em cada ser, individualmente. Já no Vama Tantra há o entendimento que a energia masculina (simbolizada por Shiva) encontra-se principalmente no homem e a energia feminina (simbolizada por Shakti) encontra-se na mulher. Então, nesse caso, só há uma maneira de integrá-las: unindo homem e mulher através do ato sexual ritualizado, chamado de maithuna. Esse é o princípio básico da história, mas sigamos na explicação.

Ambas as filosofias compartilham grande parte de suas técnicas. Neste artigo vamos nos concentrar no caso do Vama Tantra, que causa tanta polêmica e dúvidas em todos, e para isso vamos buscar ajuda de alguns mestres da tradição tântrica.

Paulo Murilo Rosas, esclarece a razão da existência do caminho do Vama Tantra:

“Para o Vama Tantra, o homem é considerado a representação de Shiva, enquanto a mulher seria a representação de Shakti. Só pela união de ambos – e a forma mais íntima de união seria a relação sexual, ritualizada (maithuna) – se poderia atingir a experiência do nenhum, que caracterizaria a superação das diferenças individuais

Swami Satyananda Saraswati, um grande mestre tântrico moderno afirma:

 “No Tantra, a prática de maithuna[2] é usualmente citada como sendo a forma mais simples de despertar a Sushumna nadi[3], uma vez que ela recomenda uma prática (a relação sexual) com a qual a maioria das pessoas já estão acostumadas. Entretanto, francamente falando, muito poucos estão preparados para esse caminho. A relação sexual comum não é maithuna. O ato físico pode ser o mesmo, mas a estrutura que o antecede é totalmente diferente. ”

Ao contrário do que possa parecer, ou do que é divulgado pela corrente “neo-tântrica”, o prazer físico não é o objetivo do vama tantra, nem mesmo é pré-requisito para o seu objetivo. Um dos objetivos principais do treinamento tântrico é o controle da ejaculação tanto no homem quanto na mulher. Voltemos às palavras de Swami Satyananda:

“Outra coisa difícil no sadhana[4] tântrico é o cultivo da atitude de indiferença. A pessoa tem de virtualmente tornar-se um brahmacharya[5] para poder libertar a mente e as emoções dos pensamentos sexuais e paixões que normalmente surgem nesse momento. Ambos os parceiros devem estar absolutamente purificados e internamente controlados antes de praticar o maithuna. Isso é muito difícil de compreender para a pessoa comum, uma vez que para a maioria, a relação sexual é o resultado da paixão e da atração física ou emocional, tanto para a reprodução quanto para o prazer. Somente quando você está totalmente purificado é que essas prioridades instintivas estarão ausentes. Conforme a tradição, o dakshina marga[6] deve ser praticado por muitos anos antes que se possa entrar no caminho do vama marga. Só então a relação do maithuna não ocorrerá para a gratificação física. O propósito é muito claro – despertar a sushumna, liberando a energia da kundalini do muladhara chakra e expandindo as áreas inconscientes do cérebro. ”

Mesmo na Índia, hoje em dia é difícil de encontrar mestres confiáveis nessa prática, que exige uma grande capacidade e força de vontade do buscador. Na verdade, pessoalmente não conheço nenhuma referência de algum mestre nessa técnica nos dias atuais. Então, todos os pseudogurus que dizem poder ensinar o Tantra no ocidente na verdade não o estão ensinando, mas sim técnicas isoladas para aumentar o prazer na relação sexual (nada contra), que algumas vezes são de origem tântrica até, mas que se encontram totalmente descontextualizadas e não podem ser chamadas de Tantra, uma vez que não compartilham com sua filosofia. Que fique bem claro que acho bastante saudável que as pessoas busquem melhorar a qualidade de suas relações sexuais com os recursos que acharem necessários. Sem nenhuma sombra de crítica moral, a restrição que aqui fazemos é apenas com a apropriação indevida do termo tantra para algo que na verdade tem pouco ou quase nada a ver com o conceito original dessa prática milenar. Embora o estrago já esteja feito, nos resta iluminar essa questão com o conhecimento dos verdadeiros gurus (guru, por definição é aquele que ilumina a ignorância de não saber quem somos), assim terminamos citando mais uma vez o mestre Satyananda:

“Caso você não tenha adquirido essa prática, você não estará apto a controlar a paixão e excitação porque você não tranquilizou seu cérebro. Esse caminho não é para ser usado indiscriminadamente como um pretexto para a autoindulgência sexual. Ele é dirigido para sadakhas[7] sérios e praticantes maduros, que estão evoluídos e que vêm praticando o sadhana para despertar a energia potencial e atingir o samadhi[8]. Esse caminho deve ser considerado como um veículo para o despertar, caso contrário ele poderá tornar-se um caminho para a queda no abismo. ”

Ricardo Coelho

[1] Filosofia (do grego, literalmente «amigo da sabedoria» ou «amor pelo saber») é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem. Ao abordar esses problemas, a filosofia se distingue da mitologia e da religião por sua ênfase em argumentos racionais” (fonte: Wikipedia). Como podemos inferir por essa simples definição, o termo filosofia surgiu na Grécia, muito tempo depois dos textos citados aqui e é uma forma de visão muito ligada à percepção da realidade pelo indivíduo ocidental típico. Então, definir o conhecimento oriental (indiano ou chinês, por exemplo) como filosofia é apenas uma aproximação do seu real significado, mas que usamos nesse texto na ausência de uma tradução melhor, mas com a observação de que esta sabedoria milenar não se limita ao conceito de filosofia como o conhecemos.

[2]   Maithuna: relação sexual ritualizada.

[3]   Sushumna nadi: canal central que corre na coluna vertebral, por onde deverá ascender a kundalini.

[4]   Sadhana: caminho

[5]   Brahmacharya: retirante, monge, ou simplesmente, estudante.

[6]   Marga: caminho, via

[7]   Sadhaka: aquele que pratica o sadhana, buscador.

[8]   Samadhi: iluminação, unidade com o absoluto.

Citações:

Swami Satyananda Saraswati (Kundalini Tantra – Yoga Publications Trust),

Paulo Murilo Rosas (Os Segredos do Tantra e do Yoga – editora ABDTY)

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Um comentário em “Tantra, Sexualidade e Espiritualidade

  1. Agora sei que sou um tântra,
    Obrigado!

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