Olá queridos.

Vamos iniciar um ciclo de publicações sobre uma questão muito importante no dito caminho espiritual. São aquelas frases, geralmente em sua origem ligadas a tradições espirituais autênticas, mas que, extraídas de seu contexto original e repetidas à exaustão como frases bonitas em workshops de fim de semana e mais recentemente nas muitas redes sociais da internet, acabam por ter seu significado diluído ou deturpado, nos levando a enganos graves em nosso processo de autoconhecimento. Essa foi sempre uma questão que me incomodou e ao encontrar esta série de artigos cunhados pelo grande acadêmico e praticante tântrico Christopher “Hareesh” Wallis, achei tão relevante que resolvi tentar traduzir (apesar das minhas limitações linguísticas), para que mais pessoas tenham acesso a esses textos que tratam de forma bastante profunda e analítica várias dessas sentenças, que ele chama em inglês de “near enemy”, termo que em português não faria muito sentido, e que preferi chamar de “frases feitas espirituais”, enumerando-as como “armadilhas”. Na medida do possível irei trazendo cada uma delas para análise.
FRASES FEITAS ESPIRITUAIS – #Armadilha1:
Tudo Acontece Por Uma Razão
Se considerarmos como uma declaração literal, essa sentença pode ser considerada verdadeira, pois afinal tudo surge por meio de causas e condições específicas. No entanto, as pessoas usam essa frase para se referir a um evento doloroso ou desafiador com um significado próximo a
“Tudo faz parte do plano de Deus”
ou
“Há um propósito mais profundo para tudo isso”
ou
“Isso é parte de um padrão mais profundo que é intrinsecamente significativo e você deve confiar, mesmo que não saiba exatamente do que se trata”
ou ainda,
“ O universo está tentando me/te dizer alguma coisa ”.
Todos os exemplos citados são problemáticos, considerando que essas idéias são freqüentemente usadas de maneira a apoiar o chamado desvio (bypass) espiritual ou o pensamento positivo. Quando a causa de um evento doloroso é colocada como invisível ou inacessível (tal como atribuí-lo a Deus ou um plano indiscernível em vez de interações humanas e falibilidade humana), isso nos desencoraja a investigar sobriamente a nossa participação nesse evento. Isso é o que chamamos de um “bypass” (desvio) espiritual: usar clichês espirituais para evitar as dificuldades do trabalho emocional, mesmo sabendo dos grandes benefícios que poderíamos obter com esse trabalho. Como o homem que cunhou o termo, o brilhante John Welwood, define: o desvio espiritual é “usar ideias e práticas espirituais para contornar ou evitar o enfrentamento de questões emocionais não resolvidas, feridas psicológicas e tarefas de desenvolvimento inacabadas, tentando elevar-se acima do lado primitivo e confuso de nossa humanidade, antes de o termos enfrentado completamente e feito as pazes com ele ”.
A mais inocente das quatro leituras que foram dadas acima é: “O universo está tentando me/te dizer alguma coisa”, que hoje em dia muitas vezes significa: “Deus está tentando lhe dizer alguma coisa”. Este conceito pode funcionar como um “Aliado Temporário”, porque pelo menos encoraja alguma reflexão: O que está sendo dito? Esse acidente de carro está me dizendo que não é seguro enviar mensagens de texto e dirigir? (resposta: sim.) Mas esta linha de pensamento é problemática, porque se você atribuir a autoria dessa ‘mensagem’ a Deus ou à inteligência divina do universo (a mesma coisa, na verdade), você acabará se ressentindo com essa inteligência da mesma forma que você se ressentia de seus pais por punitivamente tentar ensinar-lhe lições.
Dessa maneira você pode ficar preso numa consciência infantil ou adolescente, tentando aprender as lições e seguir a linha do universo com o objetivo de apenas ser recompensado com bom karma ou perfeita harmonia com tudo. Muito mais benéfico do que essa visão distorcida e desalinhada é o simples reconhecimento de que as ações têm consequências e que, se você prestar atenção a essas consequências quando elas ainda são pequenas, elas não terão a chance de crescer como uma bola de neve para algo maior. Porque muitas vezes é verdade que, se ignorarmos uma oportunidade de aprender algo prático sobre o modo como as coisas (ou os seres humanos) funcionam, essa oportunidade se reapresentará com maior e maior ênfase até que seja reconhecida.
Então, qual das interpretações citadas podemos melhor usar como exemplo para caracterizar como uma “frase feita espiritual”? A frase acima que fica mais próxima desse significado é: “É parte de um padrão mais profundo que é intrinsecamente significativo e em que você deve confiar”.
Mas essa frase é enganosa de maneira significativa. Sim, existe um padrão para a existência – estruturas profundas e ritmos nos quais tudo se encaixa, embora alguns padrões sejam muito sutis e complexos para prevermos, até os dias atuais (isso é chamado de teoria do caos). Mas não é o caso que você “deve” confiar no Padrão sem questionar, porque você ainda está implicitamente delegando autoridade a um “poder superior” (parental) e isentando-se do trabalho espiritual. É muito mais benéfico (na minha experiência e na de outros que já fizeram esse trabalho) aprender a ir além da sua própria mente e seus filtros mentais através da meditação e do cultivo da consciência para que você possa começar a perceber diretamente o Padrão (embora você nunca vá entendê-lo, é claro).
Muito mais maduro espiritualmente, eu argumentaria, é confiar em algo do qual você tem uma noção do que acreditar em uma construção mental abstrata. E será certamente mais gratificante. Experiencialmente falando, há uma enorme diferença entre acreditar que há um padrão mais profundo e realmente senti-lo e perceber algo de seu caráter formador. Sentindo-o diretamente da mesma maneira que você vê que a grama é verde ou ouve um canto de um pássaro sem precisar racionalizar ou compreender seu significado subsequentemente.
Este padrão mais profundo é intrinsecamente significativo? Sim e não. Conceitualmente, não é significativo porque não possui mensagem que possa ser convertida em palavras e nem está tentando “realizar” algo. Mas, de forma não conceitual, é incrivelmente significativo, da mesma forma que uma flor ou uma galáxia é significativa. Isso é o que é e por isso é lindo. Então, quando você começa a sentir diretamente o Padrão, você percebe sua beleza. Sua beleza inefável, imponente, que de alguma forma inclui tudo. Então você pode confiar. Você confia no desdobramento da sua vida. Você acredita que o universo, por assim dizer, sabe exatamente o que está fazendo, e você vê diretamente como era absurdo não confiar. E então você ri como um louco de si mesmo.
Qual é o ensinamento final sobre isso? No Shaiva Tantra, como no Tantra budista é: sim, tudo acontece por uma razão – e a razão é “tudo aquilo que já aconteceu alguma vez”. Porque tudo surge por intermédio de causas e condições, que por sua vez têm causas e condições, e se você rastrear todo o caminho de volta, tudo ficará completamente enredado, e então você chegará ao Big Bang. (É por isso que Carl Sagan disse: “Se você quiser fazer uma torta de maçã, primeiro é preciso criar um universo”). Então, tudo é a causa de tudo o que acontece. Literalmente. É assim que tudo está interconectado. É por isso que o Shaiva Tantra diz: “Cada coisa está contida em todas as coisas e todas as coisas estão contidas em cada coisa. Contemplar qualquer coisa é contemplar tudo. ”(Parafraseado de Śiva-dṛṣṭi capítulo 5)
SOBRE A IMPORTÂNCIA DA VERDADE NO QUESTIONAMENTO ESPIRITUAL
Vivemos agora em um clima social e político corretamente descrito como “pós-factual”, o que significa que as pessoas não são claras sobre o que são os fatos e/ou suspeitam que eles não existam de maneira confiável. A principal razão para isso é a Internet, que desde a sua privatização em 1994 deu às pessoas acesso a uma enorme quantidade de informações e a uma enorme quantidade de desinformação. Em combinação com nosso fracassado sistema de ensino, que ainda não exige que os alunos tenham aulas de raciocínio crítico (como entender as falácias lógicas básicas), isso significa que a grande maioria dos cidadãos não pode habilmente separar fatos da meia-verdade da ficção direta (ou então acha essas distinções sem sentido).
Vamos rever brevemente essa diferença. Um fato é algo que todos podem concordar: por exemplo, todo ser humano que, assim como Galileu, se preocupar em medir, chegará à conclusão que um objeto jogado de um prédio alto cairá a uma taxa de 9,8 m/s ao quadrado. Então isso é um fato. Os fatos também existem em outras disciplinas, assim como na ciência: por exemplo, uma enorme quantidade de evidências demonstra que um navio de passageiros chamado Titanic afundou em 1912, de modo que nenhuma pessoa razoável que olhasse para a evidência poderia duvidar disso. Os fatos não mudam com o tempo, eles só parecem mudar aos olhos do público em geral, porque coletar mais dados faz com que os cientistas revisem conclusões anteriores (divulgadas prematuramente para a imprensa) à luz do conjunto de dados expandido e mais detalhado. Mas os fatos em si não mudam; em vez disso, nossa capacidade de descrevê-los melhora lentamente, o que às vezes implica a percepção de que um esforço anterior de descrição estava errado. Agora, ao contrário, uma ficção ou inverdade é uma afirmação para a qual nenhum observador cuidadoso pode encontrar evidências suficientes (como “cães podem voar” ou “alienígenas construíram as pirâmides” ou “vacinas causam autismo”), assumindo que o observador já não se encontre comprometido com uma conclusão específica ao iniciar sua observação (isso é super importante: apenas a investigação motivada pela curiosidade aberta, sem uma conclusão precipitada, pode produzir a verdade).
Há também um tipo especial de ficção científica chamado de hipótese, que significa algo que muito bem pode ser verdade, mas para o qual ainda não há provas suficientes. Agora aqui é onde fica um pouco mais complicado. Na ciência, é bem compreendido que nada pode ser provado com 100% de certeza (porque o método científico é principalmente indutivo): algo pode ser refutado, ou algo pode ser provado com qualquer coisa até 99,999999999999999% de certeza (sim, isso é um dado exato, da eletrodinâmica quântica, o mais bem comprovado de todos os modelos científicos). Quando uma hipótese atinge um percentual muito alto de probabilidade (geralmente, de 97% a 99%), ela é chamada de teoria na ciência. Isso confunde o público em geral, porque os não-cientistas usam o termo “teoria” para significar “hipótese” ou mesmo “suposição”. Mas a Teoria da Relatividade e a Teoria da Evolução pela Seleção Natural são chamadas assim porque têm mais de 99% de probabilidade de estar certas, depois de mais de um século de testes. Como podemos estabelecer essa probabilidade? Quando inúmeros experimentos usando uma hipótese explicam com sucesso os eventos passados e presentes e predizem com precisão eventos futuros. Agora, uma teoria é um modelo mental bem-sucedido, portanto ela é parte da realidade de segunda ordem, não da realidade de primeira ordem. Mas o que é extremamente importante reconhecer é que alguns modelos mentais são muito mais precisos que outros (porque enfrentam repetidos testes e fazem previsões precisas). Se as teorias desenvolvidas pela ciência não funcionassem consistentemente, você não estaria lendo isso agora, porque os computadores não existiriam.
Mas podemos ir ainda mais longe. Se não houvesse algumas verdades fundamentais sobre os seres humanos que todos nós compartilhamos, nunca seríamos capazes de nos entender. Essas verdades são mais difíceis de articular, porque embora haja uma generalização precisa, é muito difícil expressá-las de tal maneira que acarrete o menor número de exceções (e os críticos sempre apontarão as exceções como se isso invalidasse a generalização). No entanto, podemos tentar um exemplo da psicologia social: acho que todos podemos concordar que todos os seres humanos têm um número indeterminado de necessidades mentais/emocionais, como a necessidade de um sensação de autonomia, a necessidade de um senso de segurança ou segurança, e assim por diante. Estes conceitos são impossíveis de quantificar, mas todos podemos concordar que os temos. E com um pouco de reflexão, provavelmente todos concordaremos que a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, está tentando satisfazer suas necessidades da melhor maneira que sabem. Na medida em que todos concordamos sobre essas proposições, podemos chamar-lhes fatos; ou pelo menos, verdades.
Mas como isso se aplica à filosofia espiritual? A espiritualidade não pertence a um domínio diferente? Não, eu argumento. Se isso acontecer, não é espiritualidade, mas fantasia. Pensamento de desejo. Qualquer Filosofia Espiritual (F.E.) digna oferece proposições (hipóteses) que podem e devem ser verificadas em sua experiência direta, isto é, empiricamente. Uma F.E. (em oposição à mera religião) argumenta implicitamente: “Se você se aplicar a esses experimentos de cultivo de consciência por um certo período de tempo, é provável que você venha a concordar com muitas dessas proposições que lhe oferecemos, mesmo que pareçam contra-intuitivas a princípio” Para que isso funcione é importante que você não esteja emocional ou pessoalmente interessado em que a F.E. esteja certa e, ao mesmo tempo, esteja totalmente aberto à possibilidade de que ela possa estar certa sobre alguns dos seus princípios-chave.
A Filosofia Espiritual (F.E.), assim como a ciência, desenvolve hipóteses, algumas das quais se tornam teorias. Ainda assim, a espiritualidade não é igual à ciência, porque muitas de suas proposições não são falsificáveis, o que significa que elas não podem ser provadas erradas, o que é um requisito na ciência. Porém algumas delas são falsificáveis, como a proposição de que “estamos todos conectados” (mais precisamente, na linguagem da física, o universo está emaranhado, o que significa que você não pode agir numa parte sem afetar todas as partes, ou pelo menos, o universo é inseparável, o que significa que nenhuma parte dele pode ser permanentemente isolada de qualquer outra parte). Por fim, diferentemente da ciência, a espiritualidade oferece proposições que só podem ser verificadas na experiência consciente subjetiva, não no espaço público objetivo.
Ainda assim, muitas dessas proposições podem ser verificadas (por qualquer pessoa paciente o suficiente) com uma quantidade razoável de certeza. Por fim, devemos observar, é claro, que qualquer proposição verbal em F.E. pode apenas se aproximar da verdade, porque a experiência consciente subjetiva, por sua própria natureza, é não-verbal. Caso contrário, você descreveria seus sentimentos com tamanha perfeição que todos os ouvintes saberiam exatamente o que você queria dizer, e esse claramente não é o caso. Mas alguns ensinamentos espirituais conseguem se aproximar mais da verdade não verbal do que outros. E alguns chegam a abordar a verdade o mais próximo possível daquilo que pode ser definido em palavras.
Quando as filosofias espirituais têm trabalhado para refinar a linguagem desses ensinamentos ao longo dos séculos, por que deveríamos estar satisfeitos com as “frases feitas espirituais” ou mesmo com os “aliados temporários”, em vez do que eles têm a oferecer?
Christopher “Hareesh” Wallis (texto original aqui https://hareesh.org/blog/2017/7/22/near-enemy-1-everything-happens-for-a-reason?rq=near%20enemy )
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